sábado, 8 de junho de 2013

SALMO SERTÂNICO

CABRA
E. B. BRITO




















Cruzo esses mundos sertânicos
que me habitam o âmago,
a escalar pedras e montes,
pisando a vegetação rasteira e outras palavras miúdas...

Nas costas, um matulão de incertezas,
de inquirições agnósticas,
perguntas tantas vezes repetidas,
sob o Sol desses desertos...

Carrego a minha Dúvida,
mas não, meu ateísmo.

Saibam todos que Deus, nessas léguas perdidas,
é uma necessidade vital.
É como o ar fresco e úmido, que leva as cabras
sempre mais alto, nesses montes desertos.
Deus está nas nuvens mais densas
e umedece o nariz dos caprinos...
Nesses sertões,
busca-se Deus, com olhos de cabra sedenta.
Os olhos dos viajores bramam por Deus.
Assim são os olhos da alma.
Alma?
Sim, isso, que nos faz ter gana de viver.
Isso, em que flui, instintiva, a lei natural da sobrevivência.
Esse vapor d'água,
que brilha nos olhos dos rebanhos assustados;

Essa nuvem cor de chumbo sobre a caatinga, está prenhe de Deus,
O mesmo Deus de Baruch Spinoza, encobre os céus dos sertões.
O Deus que de repente desabará, pluvial, sobre essa Dúvida
e encharcará a chã sequiosa dessa caminhada.

Deus, nessas léguas sertânicas, é essa necessidade radical,
no âmago estremecido da vida.

Subo este monte, carregando a minha sede,
e alço meus olhos aos céus cinzentos.

Sopra, invisível, um vento umedecido.
Sinto o sagrado em minhas narinas...


Eurico, sertânico
(bramando, "como o cervo, pelas correntes das águas...")

Com humilde dedicatória a Elomar, imenso criador de cabras, palavras e canções.

Fonte da imagem:
Cabras sertanejas

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O CARCARÁ






















O Carcará
(volataria rés-do-chão, ou um close-up cabralino)



O carcará é o eco do eco,
Do eco seco,
Onomatopaico eco.

Falcão modesto
E sem estirpe
Que, não se apresta, de resto,
Aos exercícios fidalgos
Da caça em volataria.
Voa rés-do-chão, rasante,
Vôo sem nada elegante
Aqui mesmo, nas barrancas
À jusante ou à montante,
do leito seco do rio.


Tem um pouco de caprino (cabra alada?)
Quando escava o chão infértil
No vão das palmas de espinhos,
caçando o rato-preá
que se esconde entre as raízes.


Um pouco de cabra ou de ema,
Outra ave de pouco senso,
Pois não escolhe alimento.
Come tudo. Rato, lagarto e cobra.
E por que haveria de escolher
entre as pedras da escassez?

Vai reto e certeiro, ao ponto.
Bicho do mato, agreste e rude,
Não faz o arrodeio e o rito
Funéreo, assim como o abutre
Que espera a morte matar.

A fome, que dá sentido
Ao seu jeito de caçar,
Não lhe permite a espera.
E nem se diz que ele caça,
Pois caça é arte mui nobre,
Pra um bicho pobre e sem raça
Pra um bicho sem sobrenome.

O carcará vai bem reto
Guiado por sua fome
Não metaforiza a lida,
Não tem pena, não vacila,
Que nenhum dó lhe consome.
Pega e arrasta a lagartixa
Abre-lhe o ventre
E, ali, come.

Lições de vida
Pros homens,
Crias da caatinga braba,
Ventres e bocas aflitas,
São os carcarás e as cabras,
Emas, ratos, lagartixas;


Lições de vida
E de morte.
De fado, de sina e sorte,
Homem e bicho
Bicho e homem.
Fauna em flora estiolada.
Juntos na mesma desdita.

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Eurico,
reeditando signos cíclicos...rsrs


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Ao poeta, músico e cuidador de almas viventes,
Éverton Vidal.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

ESPERANÇA


Esperança
E. B. Brito





















Nenhuma realidade é estática,
feito uma fera empalhada na vitrine:

Essa que vemos sempre nos enlaça.
Mesmo que seja assim, umbrátil e baça,
E que algo, nela, pouco se define.

Poderá o incauto ser flaneur na vida
E deambular por sua circunstância
Como quem nada sente e nada vê...

Mas a realidade é onça e avança sobre a gente
Com dores e prazeres, e, de boamente,
Abocanha-nos o ser

Se houver Seca, então, bem dentro d’alma...

(e o estio é mais feroz que u'a mera onça,
é a melancólica sombra que ronda
sobre quem passa,
no ermo em que vivemos,
e a tudo abrasa),

...vai ser preciso se prover de palma
e de cantis, se esse deserto avança.
Plantar um inverno, e, se possível, calma.
Sonhar um açude e untar-se de esperança...





Eurico

14/05/2013


Imagem:
AbARCA,
de Emanuel Bezerra de Brito
Natal - RN



quarta-feira, 20 de março de 2013

PAVÃO SOBRE O TELHADO

PAISAGEM COM PAVÃO - E. B. Brito




















A gente cresce por fora,
Vivendo a vida recente.
Dentro, há muito mais d’outrora
Do que aqui se pressente.

A memória jorra agora
É irrupção no presente
E esparge coisas miúdas,
Antigas coisas e gentes
:
Ora é água de cacimba
salto solto em rio perene
e o baixio todo alagado.
Por vezes, estrada e sol
Léguas, pra ir no barreiro,
Pra dar de beber pro gado.

A memória traz visões,
nos sobressaltos da noite.
Cabriolas e pavões,
em cima de algum telhado,

A memória é dentro e fora
resíduo do impermanente
um imenso mundo que aflora
paisagem dentro da gente...


 
Fonte da img:
AbARCA

sábado, 16 de março de 2013

NADIR (zoom n'areia)


Conchinhas d'Areia
Emanuel B. Brito



e esse formigamento nos olhos
esses pequeníssimos e inumeráveis ciscos
e esses mil diminutos pontos graníticos,
e esse nadir: o avesso de milhares de miúdas estrelas,
ora esse quartzo que lateja,
ora esses prismas em mica,
e esses quase- animálculos, minúsculos
e esses esporos, áporos, inanimados,
e esses poros na pele de tudo
e essas miríades de formas no caminho
e esses fragmentos rútilos à magma
e essas retinas afadigadas
e essa sensação quase imperceptível
de rocha desagregada em sal, no solo,
nos solados ........................................



Fonte da imagem:


VIDA SECA

Ser tão triste
E. B. Brito



















 

Não há muito por dizer 
e as palavras que restaram estão gastas. 

Errar, légua após légua, 
assim por dentro, um ermo. 

Errar pelo deserto
à busca de mim mesmo. 

Toda essa luz na estrada e a boca seca.
Só me resta essa demasiada sede de viver.



Fonte da img.:
AbARCA


sábado, 15 de setembro de 2012

TRÊS CANCELAS (pórtico manguearmorial)

Vaqueiro - E. B. Brito




Graciliano


As palavras que nomeiam esse emblemático itinerário de retirante não saíram apenas de mim. Por meus olhos, pelos meus ouvidos, por todos os meus sentidos ecoam e fluem os sons de outras palavras, vistas, ouvidas e lidas.


Muito jovem ainda, vi um filme nacionalíssimo: Vidas Secas.
Esse filme impregnou minhalma de menino urbano com a luz enceguecente e árida dos sertões.
Desde essa época, aquelas imagens de uma família sertaneja fugindo da estiagem por leitos secos de rios, tendo por plano de fundo os mandacarus solitários no horizonte, se tornariam signos, arquétipos, clichês abrasados (ou brasões?), no que há de coletivo em meu inconsciente. E logo compreendi que aqueles clichês simbólicos seriam, na minha arte, recriados pela perspectiva de minhas palavras. Graciliano descreve um juázeiro latejando ao sol da tardinha: um clichê. As queixadas de animais mortos na seca: clichês. Clichês eternizados pelas xilogravuras, cerâmicas, emboladas, cordéis e, romances. Obras de arte que se tornaram verdadeiras marcas, registradas em nossas retinas, em nossa memória.


Cavalo Doido - E. B. Brito

Ariano


Essas marcas, e não só as marcas de ferrar bois, é que seriam entendidas, pelo espírito arguto do romancista Ariano Suassuna, como símbolos de uma heráldica sertaneja; como expressões armoriais do universo nordestino. Seriam os emblemas e brasões do Quinto Império, surgido de um sebastianismo lusófono, em que o território da pátria é a própria língua, como queria Bernardo Soares (Fernando Pessoa). Creio nisto, pois o Quinto Império consiste de uma comunidade supranacional de língua portuguesa, revel à ânsia globalizante de devorar a alma da nação, sua cultura popular. Contra esse monstro globalizador temos a força visceral da Língua, última flor neo-latina, inculta e bela. A pátria é antes de tudo uma forma habitual de convivência, daí entendermos por língua pátria todo o arsenal de cultura, usos e costumes descritos e guardados por ela. As palavras são usos, como dizia Ortega y Gasset. E os signos armoriais entrevistos nas marcas de ferrar bois pelo arguto Ariano Suassuna, fixam-se nos usos, na língua, da mesma maneira que os repentes, as emboladas, o côco da praia são todas fixados no código imenso da língua falada, na pátria intra-histórica do idioma.



Caranguejo - E. B. Brito

Francisco


Mas não há como esquecer de outro poeta, espírito iluminado e breve como um relâmpago sobre a maré de agosto: Chico Science. Esse artista também captou os sons e as imagens dessa terra e criou revolucionários brasões poético-musicais. E não é à toa que quero citá-lo ao lado de Ariano. Quero aqui aproximar as idéias desses dois artistas geniais. A diferença é que Chico captou outra geografia, a da fome ribeirinha, clichê firmado por Josué de Castro. E registrou uma heráldica radicalmente nova e alumiosa. Quase que digo que Chico era o Prinspe Alumioso, feito aquele da Pedra do Reino, e que irá voltar para fundar um Quinto Império manguebeat. A ausência do Science deixa uma saudade messiânica que pode gerar na cena mangue uma espécie de neo-sebastianismo litorâneo. Isto porque Chico trazia um dizer p(r)o(f)ético e missionário. Seu clichê era cósmico: da lama ao caos! Era, em verdade, um Prinspe fulgurante que nos arrebatava com suas misturas de ritmos, com suas palavras apocalípticas, inspirado nas antevisões do Josué.

Pois, no pórtico dessa obra, em que busco uma mitopoética manguearmorial, venho saudar a fusão das artes desses três mestres, Graciliano, Ariano e Chico Science. Tentarei captar, do inconsciente coletivo, os signos que façam o encontro do sertão com o mangue, por seus ritmos, seus cheiros, sua flora e sua fauna, e, principalmente, pelas palavras mestiças dos descendentes de Canudos, que, egressos do semi-árido, habitam as margens dos rios poluídos dessas cidades, irmãs das pedras que seguram o mar...





Emanuel Bezerra de Brito


Emanuel 
 
o artista cearense Emanuel Bezerra de Brito assinará as ilustrações do blogue.
E Eurico, esse humilde escrevinhador, assinará os textos e poemas.
 
Haja Deus!